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"Órfãos da Zika" surgiu da necessidade de entender, conhecer e contar uma história que costuma ser deixada de lado e escondida como se não existisse: a de uma mãe que não pôde criar seu filho, nascido com microcefalia. Depois do contato com diversas fontes, percebe-se que as crianças com essa malformação acabam sendo também órfãs de Estado. As Secretarias de Saúde e de Educação de Pernambuco contaram sua versão da história. Joyce e Miriam contaram sua realidade. Além disso, aborto tornou-se um tema necessário. Aborto pra quem? Olímpio Moraes, Vinícius Calado e Ana Luiza Mousinho respondem. E, por fim, um especial: Ana* e a histórias de uma mulher que, antes de abandonar a filha, foi abandonada pela vida.

Órfãos de saúde

Em outubro de 2015, a história do surto de microcefalia em Pernambuco teve início. Naquela data a Secretaria Estadual de Saúde foi notificada sobre 29 crianças nascidas com a malformação somente em agosto daquele ano. A partir daí, o estado começou a acompanhar esses casos e criou um protocolo de atendimento para ter informações sobre o que acontecia. Em 28 de novembro, o Ministério da Saúde confirmou a relação entre a microcefalia e o vírus Zika. Um dia depois, Pernambuco e o Recife decretaram estado de emergência pela quantidade de casos da malformação.

 

Até 08 de outubro deste ano, Pernambuco tinha 389 casos confirmados de microcefalia e 264 em investigação. Antes de 2015, eram apenas cerca de 12 crianças por ano nascidas com o problema. Quando o surto começou, o estado contava com dois hospitais para tratamento de microcefalia, hoje são 26. O atendimento, ainda insuficiente, foi mais descentralizado. O diagnóstico é realizado em cinco cidades pernambucanas: Recife, Caruaru e Garanhuns (Agreste), Serra Talhada e Petrolina (no Sertão).

Desde o surto, foram cerca de R$ 65 milhões gastos pelo estado de Pernambuco com questões relacionadas à microcefalia. Desses, tR$ 3 milhões vieram do Ministério da Saúde para auxiliar no fechamento dos diagnósticos, com o propósito de repasse de R$ 1 milhão aos municípios.

 

“A gente está fazendo História. Infelizmente é em relação a uma doença, mas estamos procurando atender a todas as necessidades. Não às expectativas. As expectativas vêm dentro das necessidades”, ressaltou Cristina Mota, secretária executiva de atenção à saúde da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, sobre a falta de algumas respostas de longo prazo procuradas pelos pais de bebês com microcefalia.

 

Pernambuco é dividido, para questões relacionadas à saúde, em 12 Gerências Regionais de Saúde (Geres): Recife, Limoeiro, Palmares, Caruaru, Garanhuns, Arcoverde, Salgueiro, Petrolina, Ouricuri, Afogados da Ingazeira, Serra Talhada e Goiana.

A Geres do Recife abrange 20 municípios. A de Limoeiro, 20. A de Palmares, 22. A de Caruaru, 32. A de Garanhuns, 21. A de Arcoverde, 13. A de Salgueiro, 7. A de Petrolina, 7. A de Ouricuri, 11. A de Afogados da Ingazeira, 12. A de Serra Talhada, 10. E a de Goiana, 10.  “Das 12 regionais de saúde, algumas estão atendendo a mais de um local. Há duas regiões em que os serviços ainda não foram implantados. Por incrível que pareça, não são no interior, mas na Região Metropolitana. São na região de Goiana, em que as crianças ainda precisam vir para o Recife, e na região de Palmares, que a gente está finalizando o processo para implantar [os serviços] no Hospital Regional de Palmares. Todas as outras têm pelo menos um serviço”, explicou Cristina Mota.

Esse é o panorama oficial do estado de Pernambuco em relação ao surto de microcefalia ocorrido em 2015. Para as famílias, no entanto, o cenário é diferente. As 29 crianças nascidas em agosto de 2015 e os 389 casos confirmados até agora têm nome, sobrenome e uma história. Os R$ 65 milhões gastos pelo estado não vão mudar o drama que elas vivem todos os dias. As propagandas de “Microcefalia, macroamor” em cartazes dentro dos ônibus também não vão mudar os olhares, as perguntas e as expressões de quem está ao redor. É preciso mais.

 

Segundo documento da Secretaria de Saúde, a distância entre as famílias e os hospitais com atendimento para os bebês foi reduzida de 420 quilômetros para 50 quilômetros. É um avanço, mas ainda há muito em que melhorar. Joyce Belo, 21 anos, por exemplo, é mãe de Júlia, de um ano. São cerca de 20 quilômetros de distância de sua casa, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, até a Fundação Altino Ventura, no Recife, onde a bebê faz o tratamento. Joyce precisa pegar dois ônibus e um metrô, levando cerca de uma hora e meia para chegar.

AS 29 CRIANÇAS NASCIDAS EM AGOSTO DE 2015 E OS 389 CASOS CONFIRMADOS ATÉ AGORA TÊM NOME, SOBRENOME E UMA HISTÓRIA

Além disso, há a caminhada de cerca de 15 minutos da parada de ônibus até o hospital. Tudo isso com uma bebê no colo. “No ônibus, as pessoas ficam olhando e perguntam. Muitas vezes nem dão lugar. No metrô as vezes eu não entro, porque está muito cheio. Aí tenho que esperar o próximo. Já bateram na cabeça dela sem querer e eu já caí com ela no braço”, comentou Joyce. Para essa mãe, 50 quilômetros a serem percorridos de ônibus e metrô exigem muito.

Além disso, a secretária executiva de Atenção à Saúde ressaltou que esses hospitais atendendo em cada Geres têm pelo menos um serviço. Isso quer dizer que em alguns lugares, por exemplo, as crianças só contam, perto de casa, com atendimento para os olhos. Em outros lugares, somente atendimento motor. E, pior ainda, o diagnóstico de microcefalia é centralizado em apenas cinco cidades. Ou seja, isso quer dizer que é preciso se deslocar para o Recife, Caruaru, Garanhuns, Serra Talhada ou Petrolina para receber um diagnóstico preciso. Mais um transtorno. Dos grandes.

Questionada sobre questões de emergência hospitalar para crianças com microcefalia, Cristina Mota ressaltou que as crianças com a malformação devem ser atendidas da mesma maneira que as crianças que não têm microcefalia.

“Elas são acima de tudo bebês”, disse. No dia a dia, a situação não se confirma.“ Uma semana dessas precisei levar Júlia na emergência. Cheguei na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) aqui perto de casa e, primeiro, não quiseram dar preferência de atendimento a ela. Eu tive que entrar a força. Quando finalmente foi atendida, o médico ficou com receio de passar remédio e mandou que ela tomasse um que não fez nenhum efeito. Tive que comprar um remédio sozinha e medicar minha filha”, explicou Joyce.

A Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco fez questão de ressaltar que o próprio governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), sentiu-se mobilizado com a situação da microcefalia e, por isso, as ações foram tão “rápidas e eficazes”. As crianças, então, continuam esperando que ele se sinta, mais uma vez, mobilizado para ver se conseguem atendimento mais rápido e mais perto. Continuam esperando que as campanhas do Governo do Estado consigam ir além de cartazes em ônibus e um site bonito. Enquanto isso, continuam órfãs de Estado e de direito à saúde.

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Joyce

 

Júlia

 

 

Joyce Belo acabou de fazer 21 anos. Quando tinha 19, engravidou de Júlia Vitória. “Foi planejado”, ela conta, “a gente queria ter um filho”. No terceiro mês de gestação, Joyce contraiu a Zika. No final da gravidez, descobriu que Júlia tinha microcefalia, mas não acreditou no diagnóstico. O marido e ela preferiram relevar, não conheciam a malformação. A sogra foi pesquisar mais, se informar, saber de todo o processo pelo qual a neta passaria. Mas ainda assim os pais não acreditaram.

 

“Quando ela nasceu, me disseram de novo que ela tinha microcefalia e me mostraram o tamanho da cabeça dela. Eu disse que não, que ela não tinha nada e que a cabeça dela era apenas grande”, relatou Joyce. Aos poucos, o diagnóstico foi se tornando real. Era a filha tão desejada e era deles. Joyce ainda não sabia de tudo o que teria de passar com Júlia. Aos poucos foi sendo orientada pelos médicos e entendeu  o que estava por vir, mas em nenhum momento a desistência surgiu como uma ideia.

 

JOYCE É UMA MENINA DE 21 ANOS COM UM BEBÊ. A DIFERENÇA É QUE JÚLIA É UMA BEBÊ GRANDE E JOYCE É UMA MENINA PEQUENA E MAGRA

Joyce é uma menina de 21 anos com um bebê. E as duas sorriem tanto que até se confundem uma com a outra. A diferença é que Júlia é uma bebê grande e Joyce é uma menina pequena e magra. Precisa comprar roupas na parte infantil. Mas para Joyce, Júlia não é uma boneca. E apesar de ser uma menina de sorriso fácil, andar rápido e maneiras apressadas, Joyce entende toda responsabilidade que tem com a filha. E, principalmente, entende a filha. “Ela gosta de ir para a casa da minha sogra, tem que ir lá todo dia, se não chora. Quando o pai chega do trabalho buzinando, ela já sabe que é ele. Adora um barulho. Fica de olhos vidrados assistindo televisão”, conta, toda feliz e empolgada, sobre a criança que é seu grande orgulho.

 

Joyce mora  num bairro chamado Dois Carneiros. A ladeira que é preciso descer para ter acesso à casa e subir para sair de lá é tão alta que carros não têm condições de passar. Mas Joyce sobe e desce como se estivesse andando de patins no lugar mais plano do mundo. Apesar de sorridente, é reservada. Não tímida. Fala pouco, mas gosta de falar sobre sua filha apesar disso.

 

Joyce Belo é mãe de uma bebê com microcefalia, mas também é esposa, filha, prima… Mulher. Júlia é uma criança que tem microcefalia, mas é acima disso filha, criança, bebê… Mulher. E as duas se combinam tanto que não poderiam ser nada menos do que mãe e filha.

No ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal determinou a liberação do aborto para casos em que fetos fossem diagnosticados com anencefalia, ou seja, o cérebro não tivesse se desenvolvido (uma situação incompatível com a vida). Apesar da quase unanimidade da decisão, oito votos a favor contra dois desfavoráveis, a problemática discutida até ali não foi tão simples de ser resolvida. Foram cerca de oito anos, depois de uma ação movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) pedindo autorização para a interrupção da gravidez, até que o assunto entrasse em pauta e fosse debatido, resolvido e determinado.

 

Muitos foram aqueles que se posicionaram contra e a favor, levando, cada lado, seus pontos de vistas, prós e contras. Hoje, uma mulher que, durante o pré-natal, fosse avisada de que seu bebê possui a deficiência, poderia ter sua livre escolha de abortar sem sofrer maiores danos (além do emocional), pois estaria resguardada pela lei. A discussão parecia estar encerrada, pelo menos nesse âmbito que considera situações excepcionais em que a mulher tem direito a optar pelo aborto.

Em 2015, quando os primeiros casos fora do quantitativo normal de bebês nascidos com microcefalia, durante um ano, começaram a surgir no Nordeste, mais especificamente em Pernambuco, em meados de outubro, além dos cuidados e soluções para o problema, o aborto voltou a ser pauta. Dessa vez, a justificativa seria o grande sofrimento que uma mulher poderia passar ao ser diagnosticada com o zika vírus (apontado como o causador da microcefalia) antes ou durante a gravidez, o que poderia causar a malformação.

“No caso de anencéfalos, o feto não tem cérebro ou, se ele tem alguma parte do cérebro, é muito pequena, o que não viabiliza a vida. No caso da microcefalia, a discussão que se trava é que existe viabilidade de vida. Ele nasce com vida e pode viver muito. Alguns com algumas limitações maiores, outros com limitações mais leves. Só que existe viabilidade de vida e aí o direito protege a vida. Então a negativa do aborto é justamente essa”, diz Ana Luisa Mousinho, membro da Comissão de Direito e Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil, em Pernambuco (OAB-PE). Ela explica que a situação ainda não está resolvida, pois depende de um posicionamento do STF, como aconteceu no caso da anencefalia, o que ainda não ocorreu.

Sobre o direito à vida, o presidente da Comissão de Direito e Saúde da OAB-PE, Vinícius Calado, explica. “São dois princípios que estão digladiando: seria o da autonomia da mulher sobre o próprio corpo e o direito à vida, que é tutelado também, pelo Código Civil, que seria o direito do bebê, protegido por lei desde a concepção” diz Calado. “Ele [o bebê] adquire capacidade com o nascimento, mas o direito protege desde a concepção. Tanto é que, quando o bebê nasce morto, não tem certidão de nascimento, apenas de óbito”.

No entanto, no início de setembro deste ano, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, declarou abertamente defender o aborto também para os casos em que a mãe do bebê é diagnosticada com infecção pelo zika vírus.

 

"NÃO PODEMOS CONSIDERAR ISSO COMO UMA EUGENIA, QUE É UMA DECISÃO TOTALITÁRIA. NESSE CASO, É UMA DECISÃO DEMOCRÁTICA, DE RESPEITO À AUTONOMIA DE UMA PESSOA" (Olímpio Moraes Filho, do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco).

Ao encaminhar para o STF um parecer favorável à interrupção da gravidez nesses casos, dizendo ser por motivo de “proteção da saúde da mulher”, ele usou como exemplo a decisão do órgão em 2012, sobre a anencefalia. Para o procurador, o fato de ser obrigada a levar a gravidez até o fim sem saber se o bebê nascerá ou não com microcefalia (e mais ainda, para aquelas que já têm o diagnóstico positivo para a malformação no feto) pode ser a causa de tortura e risco à saúde psíquica da mulher. Por essas razões, é considerável o aborto.

“A gente não tem uma unanimidade nesse assunto. Quando as ações começarem a chegar ao judiciário, da grávida para tentar o aborto por causa da microcefalia, vai ser caso a caso. Cada juiz terá que decidir isoladamente, porque, por enquanto, não existe decisão judicial que o respalde”, completa Ana Luiza.

Ninguém deve engravidar sem desejar -  A medicina considera aborto o procedimento feito entre a vigésima e a vigésima segunda semana de gravidez, o que corresponde ao quinto mês de gestação. Isso porque, na literatura médica, após esse período há chance se sobrevida, o que tornaria o processo não mais um aborto, mas um parto induzido.

No Brasil, atualmente, os três casos nos quais o abortamento é permitido (anencefalia, gravidez resultante de estupro e risco de vida para a mãe) podem aderir uma quarta situação, que é quando a mulher é diagnosticada com zika vírus, que ainda está em discussão no âmbito judicial.   

As muitas dúvidas ainda existentes sobre quais danos podem ser trazidos ao bebê quando a mãe é infectada com o vírus terminam por deixar a sociedade médica e demais profissionais da saúde em alerta. O médico ginecologista e obstetra Olímpio Moraes Filho, conselheiro do Conselho Regional de Medicina (Cremepe), explica que a Organização Mundial da Saúde (OMS) orienta que os países devem aumentar o permissivo do aborto nos casos de diagnóstico sorológico da zika, no começo da gravidez, ou seja, antes mesmo de saber se o bebê nascerá ou não com microcefalia.

No caso de microcefalia, o médico explica que não seria abortamento o procedimento feito, mas antecipação do parto, devido ao período tardio de descoberta da malformação, posterior ao que é entendido, hoje, no Brasil, como aborto.  

“Como, na medicina, a gente considera o abortamento até 20 ou 22 semanas, e a microcefalia é descoberta depois desse período, entre o sétimo e oitavo mês, não até o quinto”, esclarece.

Mas mesmo a microcefalia sendo a consequência da infecção do zika mais conhecida pela população, existem outros problemas que podem ser acarretados ainda depois do nascimento do bebê e que podem trazer danos graves à saúde da criança.

“Hoje a gente considera que a microcefalia é apenas um sintoma da Síndrome Congênita da Zika, e que também não é o mais comum. O feto pode nascer com outros problemas, como retardo mental, surdez, cegueira, alterações articulares graves que impedem os movimentos, malformações cardíacas. Podem também ter malformações que não são incompatíveis com a vida, mas causam danos muito grandes à saúde e à vida do recém-nascido. Ou pode nascer aparentemente sem problema algum e os sintomas aparecerem depois do nascimento, normalmente no primeiro ou segundo ano de vida”, elucida o ginecologista.

 

O médico defende que deveria haver uma alteração na lei que permitisse o aborto para os casos de microcefalia considerando vários fatores. Primeiro porque os danos reais à saúde do bebê ainda não são conhecidos e o diagnóstico da microcefalia é dado de forma muito tardia. Segundo que, por causa dessa espera, a mãe seria submetida a uma situação de grande sofrimento.

“Não podemos considerar isso como uma eugenia, que é uma decisão totalitária. Nesse caso, é uma decisão democrática, de respeito à autonomia de uma pessoa interromper ou não. Ninguém está determinando a interrupção”.

Ele também explica que a simples criminalização do aborto, seja qual for o caso, não tem efeito prático visível, pois não diminui o número de procedimentos realizados. Pelo contrário, a determinação acaba por causar a morte de milhares de mulheres todos os anos, a maioria pobre e negra, que não tem acesso a médicos e, consequentemente, a um abortamento seguro.

“Nem todos os problemas que nós temos, de saúde pública ou sociais, podem ser enfrentados por meio de uma lei. Não é o fato de não concordarmos com determinada coisa que basta fazer uma lei, que o problema é resolvido”.

Uma solução plausível e que, segundo Olímpio Moraes, traz resultados mais consistentes é a educação sexual, que deve ser iniciada ainda nas escolas, com orientações e oferecimentos e demonstrações de funcionamento de métodos contraceptivos, como o Dispositivo Ultra Uterino (DIU), que independe da lembrança e do uso constante da mulher, pois pode ficar em seu organismo por até dez anos.

“Um método para diminuir o aborto é diminuir o número de gravidez indesejadas. Ninguém deve engravidar sem desejar”.

O obstetra ainda reflete sobre as consequências que uma gestação não planejada e, mais ainda, não querida pela mulher pode trazer para ela e também para a criança.

“Qualquer ser vivo, para se tornar um ser vivo bonito, não violento, precisa ser amado, ser desejado. O que se espera de um ser humano que vai nascer num ambiente em que ele não foi desejado, não vai ser amado? O que ele dará de volta à sociedade quando crescer?”, finaliza.

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PRECISAMOS FALAR SOBRE

A B O R T O

dUAS DORES

Ana* conheceu José* no ferro velho, quando tinha acabado de ser colocada para fora de casa pelo ex- marido. Ela e Letícia*, sua filha mais velha, já vivem com ele há dois anos. A casa da família é um único quadrado sem divisórias, onde sala, quarto e cozinha são um só espaço. Hoje, o casal trabalha procurando materiais recicláveis para vender. José e Ana têm duas filhas: uma que está sendo criada pela tia no Rio de Janeiro e Isabella*, que tem microcefalia e é criada por outra tia, em Olinda. Ana tem, ainda, mais dois filhos, que são criados por uma pessoa numa vila próxima. Dois dos filhos de Ana morreram e uma foi tomada pelo conselho tutelar. Ana sofre por ter precisado se separar dos filhos. Isabella ainda não entende, mas já foi separada da figura materna duas vezes.

Ana, tu tens quantos anos?

 

Tenho 30.

 

José, qual tua idade?

 

Não sei. São quantos? 40!

 

Vocês moram aqui há muito tempo?

 

Há uns dois anos.

 

E vocês se conheceram como?

 

Ana: Eu conheci ele no ferro velho. A gente trabalha na reciclagem. A gente procura material em Paulista, Tabajara… [cidade e bairro da Região Metropolitana].

José: Eu comprei uma carroça pra mim, pra eu trabalha José Mas eu conheci ela no ferro velho. Ela e essa aí [Letícia, filha de Ana]. Chegaram as duas lá com uma mala e quem botou ela no meu caminho foi o dono do ferro velho, seu Geraldo. Eu peguei e trouxe ela pra casa, pra ela não ficar com essa daí na rua.

 

E por que tu estavas lá com mala e tudo no ferro velho?

 

Ana: Foi porque eu morava com um homem, aí eu vim olhar minha outra filha dentro da vila, aí o cara disse que eu tava atrás de homem. Aí foi e me botou pra fora. Aí eu vim com ela pro ferro velho e conheci ele. Até hoje.

 

Tu tens quantos filhos?

 

Ana: Tenho oito com Letícia.

 

Tu conheceu Shirley* [cunhada de Ana e mãe adotiva de Isabella] aqui?

 

Sim. Viramos amigas até hoje. Uma ajuda a outra.

 

Letícia é tua filha mais velha?

 

Ana: É, ela tem 11 anos. Isabella é a mais nova.

José: E tem outra que tá no Rio com minha irmã. A gente deu a ela, porque não podia criar. Aí eu preferi dar à minha irmã do que dar a pessoas estranhas, que eu não conheço. Eu não vou poder ver minha filha e agora de vez em quando eu vejo, quando minha irmã vem pra cá, tudo.

 

Ela tem quantos anos?

 

José: Nem sei.

Letícia: Laura, a do Rio, tem cinco.

 

E com Isabella? Como foi?

 

Ana: Eu fui descansar, fazer o pré-natal, mas não acusou nada que ela tinha esse problema [microcefalia]. Assim que nasceu, ela tava roxinha e sem chorar. Aí até ele desmaiou na sala, tava assistindo o parto, os doutores puxaram ele pra fora.

 

José: Quando o doutor tirou ela, puxou ela pra fora, aí eu vi ela toda roxa. Não aguentei. Eu não achava que ela tinha sobrevivido.

 

Vocês sabiam do surto de microcefalia que estava acontecendo, dessa malformação?

 

Ana: Não.

José: Foi uma surpresa.

 

Tu teves sintomas de zika?

 

Ana: Eu tive a dengue. Descobri depois. Eu tava grávida já, a barriga já estava grande.

 

Quando a microcefalia foi descoberta, eles te explicaram o que era e como tu deverias lidar?

 

Ana: Eu continuei no escuro. Fiquei com um pouquinho de medo. Pensava que vinha normal, mas veio doentinha.

 

José: Quando eles disseram “olhe como sua filha tá”, ele me mostrou e eu não aguentei. Comecei a chorar lá dentro, de vez em quando eu caía, desmaiava lá. E tinha que vir aqui dar a notícia à minha irmã. Que era uma menina, mas não disseram nada que ela tinha isso.

E depois disso?

José: A gente teve que dar, porque não dava pra sustentar ela. Aí pra não dar a outras pessoas, eu peguei e dei à minha irmã pra ela criar. Eu não tinha condições, a gente trabalhava no ferro velho, mas era pouco dinheiro. Aí eu disse “é melhor tu dar a minha irmã, pra minha irmã criar”, aí ela pegou e deu.

 

Ana: A menina [Isabella] ia lá pro Rio de Janeiro com uma advogada, aí ela descobriu que nasceu com esse negócio [microcefalia] e não quis mais. Aí minha cunhada foi e segurou ela, ficou com ela.

E como é a convivência, já que ela mora tão perto?

José: A gente vê ela de vez em quando, vê ela lá na frente com a menina. A gente só não pode se aproximar muito dela, porque ela tem esses problemas. Tem vezes que quando a gente vem da rua, tem que tomar um banho pra não pegar sujeira, tudinho. Aí ela [Ana] fumava, assim, de vez em quando, mas parou por causa de Isabella.

Vocês querem que ela saiba que vocês são os pais dela?

Os dois balançaram a cabeça afirmativamente.

E pretendem um dia voltar a criá-la?

Ana: Eu acho que não. A minha cunhada tá muito agarrada com ela.

José: Muito agarrada. Pra tirar ela agora, ninguém pode tirar mais não. A gente sente saudade um pouquinho, mas de vez em quando fica vendo ela. Pertinho a gente vê ela direto.

Vocês têm oito filhos, não é? Onde eles estão?

Ana: Dois morreram lá onde eu morava, o conselho tutelar de lá tomou uma de mim, tem dois aqui na vila, tem ela [Letícia], tem a do Rio e tem essa [Isabella].

Como é a convivência de Letícia com Isabella?

Ana: É boa. Tem hora que ela pega, tem hora que ela brinca. Ela foi pro Rio de Janeiro, mas voltou. Não quis ficar. Ela ia morar com a irmã dele [José].

 

Vocês têm quantos irmãos?

 

José: Tem eu, Shirley, a que tá em outro estado e tem a outra que tá lá na frente [em outra casa].

 

Ana: Tenho dois irmãos por parte de pai, mas eles não ligam pra mim não. Minha mãe faleceu. Eu sou de Campina Grande, na Paraíba. Eu vim pra Olinda com meu irmão, aí ele faleceu e eu fiquei.

 

Como foi o início da vida aqui?

 

Ana: Eu aprendi muita coisa. Cheguei aqui com 27 anos.

E S P E C I A L

Como os teus outros filhos foram adotados pelas famílias?

 

Ana: A mulher que morava lá embaixo pegou pra criar. Ela disse que queria. Isabella ia pra essa advogada, mas quando ela soube que ela [a bebê] tava com esse problema, não quis mais. Assim que minha cunhada chegou no hospital, foi logo furando a orelha dela, de Isabella.

Quem escolheu o nome?

Ana: Foi minha cunhada.

E ela é registrada no nome de quem?

 

Ana: Tá no nome dela [de Shirley].

José: A gente deu a guarda a ela.

Ana: A gente passou pra ela

 

Como num processo de adoção?

Sim.

Ana: Aqui é muito pequeno. Não tem nem como fazer uma mudança, porque eu gosto de mudar muito as coisas.

José: Aí é o quarto [ele aponta para o lugar onde estamos sentadas, na cama]. Ela [Letícia] dorme aí e a gente dorme aqui no chão. Porque não tem como dividir e fazer um quarto.

Ana: Quando é de noite, os ratos passam em cima da gente [dá um sorriso constrangido].

Esse terreno todo é de vocês? Aqui atrás também?

 

José: É da família. Já tá tudo construído. Aqui tem minha sobrinha, minha irmã. Tem outra que tá lá na frente... [aponta para todos os lados da casa]

É todo mundo parente aqui?

 

José: Tudinho.

O trabalho de vocês é aqui perto? Ou é muito longe?

 

José: É muito longe. A gente tava trabalhando aqui, mas o ferro-velho fechou. Aí, quando fechou passei uns tempos parado. Parado mesmo dentro de casa, sem fazer nada. A gente trabalhava com carro de mão. Era de noite e a gente trabalhava pra pegar reciclagem, pra comprar as coisas pra dentro de casa. Aí depois fui ajudando o meu sobrinho, que foi construir o quarto de Isabella aí em cima. Aí fui ajudando, fui ajudando. Aí ele disse: a gente vai comprar uma carroça pra tu, pra tu trabalhar. Aí juntou ele e outras pessoas. Aí se juntou todo mundo pra comprar a carroça.

Aí vocês saem juntos pra trabalhar?

José: É, eu e ela [Ana]. E ela fica em casa [Letícia].

Fica sozinha?

 

José: É, ela faz as coisas, arruma a casa. A gente deixa comida pra ela. Tem vezes que eu deixo dinheiro pra ela tomar café.

Quantas horas, mais ou menos, vocês passam longe de casa trabalhando?

 

José: Só chega de noite.

Mas saem umas sete horas...?

 

Ana: Sai de cinco horas.

Cinco horas... e volta essa hora, mais de sete da noite?

 

José: A gente bate no Janga, Maranguape I, Paulista, Tabajara, Peixinhos.

E tudo o que vocês arrecadam, deixam onde?

 

José: A gente vende e eles dão o dinheiro.

E é aqui perto que vocês vendem?

 

José: É, ali perto da Ilha do... Ilha do rato, né?

Ana: É.

José: Tem a do rato. Tem aqui junto do Varadouro. Tem em Peixinhos. Tem em todo canto pra gente vender.

 

Aí, no caso, vocês vendem todos os dias, né? Aí vocês ganham quanto por dia?

 

José: A gente ganha cinquenta.

 

Cada um ou tudo junto?

 

José: Tudo junto.

 

É nessa faixa, mais ou menos?

 

José: Tem vezes que a gente ganha mais, né?

Ana: Tem vezes que a gente ganha trinta.

José: Quem gosta de dinheiro é essa daí [Letícia]. Fica me pedindo direto: painho, quero dinheiro, painho quero comprar isso.

 

E tudo gostas de fazer o que com o dinheiro, Letícia? Tu compras o que?

 

José: Leva lanche pro colégio, leva biscoito, leva guaraná.

 

Teu colégio é de manhã ou de tarde, Letícia?

 

Letícia: Tarde.

 

Aí é a tarde toda?

 

Letícia: É até as cinco e dez. De uma até cinco e dez.

 

Aí tu arruma aqui, se arruma e vai pra escola?

 

Letícia: É.

 

Aí quando volta fica esperando eles?

 

Letícia: Assistindo... [Televisão]

 

José: Ela fica assistindo... Quando não quer assistir, vai brincar de boneca. Ai me pede: deixa eu brincar, painho. Ai eu digo: vai timbora brincar.

 

A gente nem perguntou tua idade, José.

 

Letícia: Quarenta!

 

Ah, foi. A gente perguntou e ela respondeu!

 

José: Eu não sei não. Eu não sei minha idade, não sei de nada.

 

 

É isso...

A gente queria conhecer vocês, falar com vocês... Foi ótimo. Muito obrigada, viu?

 

José: Se chegasse mais tarde um pouquinho, tava arrumada a casa.

 

Não, imagina. Muito obrigada por ter recebido a gente. E por ter contado da história de vocês. Aprendemos muito.

 

*Todos os nomes desta entrevista são fictícios para preservar as identidades das fontes.

ÓRFÃOS DE EDUCAÇÃO

A educação de crianças não é tarefa fácil. Demanda atenção, cuidado e orientação constante. Essas características ficam ainda mais acentuadas quando as crianças possuem necessidades especiais.

Com o início do surto de bebês nascidos com microcefalia, uma das principais preocupações, além dos tratamentos iniciados e remédios comprados, foi como essa crianças seriam recebidas nas creches e colégios quando chegassem em idade escolar.

Suzana Brainer,  professora técnica da Secretaria de Educação do estado de Pernambuco, diz que o início da política de educação especial foi no ano de 2008, com a Escola Inclusiva. Para as crianças com microcefalia ela também diz que já eram contempladas pela educação especial oferecida pelo governo estadual, antes mesmo do surto.

Com o aumento de casos, foi feito um mapeamento de onde estava o maior número de crianças microcéfalas nascidas em cada região do estado. Esse mapeamento foi feito pelas dezesseis Gerências Regionais de Educação (Geres), que são responsáveis por essas regiões.

No entanto, Eliane, mãe de Marília, cinco anos, que tem Síndrome de Down e que iniciou este ano os estudos em um colégio municipal da cidade de Paulista, discorda que a educação para crianças com necessidades especiais esteja recebendo a atenção merecida.

 

Depois de procurar em colégios particulares (Marília estudava numa escola privada na cidade, mas que também não tinha estrutura suficiente para atender sua filha), Eliane colocou Marília no Colégio Municipal Manoel Gonçalves, em Paulista.

Para entrar lá, Marília precisou esperar um mês até que uma cuidadora fosse encaminhada para acompanhar a menina nas aulas. No entanto, Eliane diz que a cuidadora não possui formação adequada para tal função, apesar de ser estudante de Pedagogia.

“Eles mandam a cuidadora sem preparação nenhuma. Eu perguntei a professora o que eles estavam dando e passar para a terapia dela e ela me disse: olhe, mãe, a gente não tem planejamento, porque eu não sei como trabalhar com a sua filha. Eu nunca trabalhei com criança especial”.

A mãe conta que precisou elaborar um caderno para a filha, baseando-se em pesquisas na internet, pois a própria escola não oferecia a educação adequada, dizendo ser diferenciada a atenção dada à menina.

Apesar de haver na escola onde Marília estuda outras crianças com necessidades especiais, como Síndrome de Down e Autismo, o tratamento não é unificado e nem é estimulada a interação entre elas.

Eliane garante que pretende entrar na justiça para lutar pelos direitos da filha.

reportagem audiovisual
A ROTINA DE JOYCE

A participação no 8º Prêmio Jovem Jornalista nos proporcionou a oportunidade de sentir na prática como é o trabalho de reportagem. A pressa para conseguir a fonte, entrar em contato com diversas pessoas em diferentes lugares e, mais ainda, ouvir as histórias que cada uma delas tinha para contar. Mas nos ensinou também, e principalmente, a ouvir. Acompanhar a rotina de Joyce, ouvir o relato de Miriam e conhecer a história de Maria das Dores nos explicou muito sobre o que realmente significa dedicação, abdicação por um bem maior e amor. Além disso, nos fez perceber que existem diversos mundos diferentes do nosso que precisam ser olhados com atenção e histórias que merecem ser contadas. Nós descobrimos que, sim, queremos ser jornalistas.

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FICHA TÉCNICA

A pauta que originou esta reportagem foi premiada na 8ª edição do Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, promovido pelo Instituto Vladimir Herzog

TEXTOS E REPORTAGENS

ana roberta amorim

thayná campos

estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco

ORIENTAÇÃO 

adriana santana

Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco

IMAGENS

fernanda carvalho / fotos públicas

marcelo soares / usp imagens

DIAGRAMAÇÃO

rayanne albuquerque

estudante do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco

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